Poesias


Não-coisa

O que o poeta quer dizer

no discurso não cabe
e se o diz é pra saber
o que ainda não sabe.


Uma fruta uma flor
um odor que relume...
Como dizer o sabor,
seu clarão seu perfume?


Como enfim traduzir
na lógica do ouvido
o que na coisa é coisa
e que não tem sentido?


A linguagem dispõe
de conceitos, de nomes
mas o gosto da fruta
só o sabes se a comes


só o sabes no corpo
o sabor que assimilas
e que na boca é festa
de saliva e papilas

invadindo-te inteiro
tal do mar o marulho
e que a fala submerge
e reduz a um barulho,

um tumulto de vozes
de gozos, de espasmos,
vertiginoso e pleno
como são os orgasmos

No entanto, o poeta
desafia o impossível
e tenta no poema
dizer o indizível:

subverte a sintaxe
implode a fala, ousa
incutir na linguagem
densidade de coisa


sem permitir, porém,
que perca a transparência
já que a coisa é fechada
à humana consciência.

O que o poeta faz
mais do que mencioná-la
é torná-la aparência
pura — e iluminá-la.

Toda coisa tem peso:
uma noite em seu centro.
O poema é uma coisa
que não tem nada dentro,

a não ser o ressoar
de uma imprecisa voz
que não quer se apagar
— essa voz somos nós.
(Ferreira Gullar)
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Árvores, Flores, Pessoas e Peixes
(Giza Bandeira)

Árvores prestam atenção nas estações
As folhas dançam com o vento
Flores caem e dão espaço aos novos brotos
As pessoas matam para não dar lugar aos outros
Mas os peixes ignoram as estações e nadam

Árvores prestam atenção nos ventos
Os galhos se fortalecem para o sustento
Flores combinam aromas e dão alimento aos pássaros
As pessoas tiram do próximo a paz
Mas os peixes esquecem tudo e nadam

Árvores prestam atenção na chuva e bebem do solo
Nas raízes, riquezas contra a morte
Flores para colher poesia numa gota de chuva sobre a pétala
As pessoas protegem-se da água
Mas os peixes aproveitam e nadam.
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O SALMO DA SAMAÚMA
(Jeová de Barros)

Senhor, que forras de pluma
os galhos da samaúma
e as aves vêm uma a uma
nesses braços barulhar

No Largo de Nazaré
toda seis de toda tarde
faça sol ou tempestade
elas vêm salmodiar

O salmo da samaúma
não é cantado por gente
é por aves inocentes
que não sabem o que é pecar.
(In.: Água Grande)
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DESEJAR SER
(Manoel de Barros)

I.
Com pedaços de mim eu monto um ser atônito.
[...]

9.
A ciência pode classificar e nomear os órgãos de um
sabiá
mas não pode medir seus encantos.
A ciência não pode calcular quantos cavalos de força
existem
nos encantos de um sabiá.

Quem acumula muita informação perde o condão de
adivinhar: divinare

Os sabiás divinam.

(In.: Livro sobre nada)
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UMA VOZ
(Ferreira Gullar)

Sua voz quando ela canta
me lembra um pássaro mas
não um pássaro cantando:
lembra um pássaro voando.
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UMA DIDÁTICA DA INVENÇÃO
(Manoel de Barros)

1.
Para apalpar as intimidades do mundo é preciso saber:
a) Que o esplendor da manhã não se abre com faca
b) O modo como as violetas preparam o dia para morrer
c) Por que é que as borboletas de tarjas vermelhas têm devoção por túmulos
d) Se o homom que toca de tarde sua existência num fagote, tem salvação
e) Que um rio que flui entre dois jacintos carrega mais ternura que um rio que flui entre dois lagartos
f) Como pegar na voz de um peixe
g) Qual o lado da noite que emudece primeiro.
etc
etc
etc
Desaprender oito horas por dia ensina os princípios.

2.
Desinventar objetos. O pente, por exemplo. Dar ao
pente funções de não pentear. Até que ele fique à
disposição de ser uma begônia. Ou uma gravanha.

Usar palavras que ainda não tenham idioma.

3.
Repetir repetir - até ficar diferente.
Repetir é um dom do estilo.

7.
No descomeço era o verbo.
Só depois é que veio o delírio do verbo.
O delírio do verbo estava no começo, lá onde a
criança diz: Eu escuto a cor dos passarinhos.
A criança não sabe que o verbo escutar não funciona
para cor, mas para som.
Então se a criança muda a função de um verbo, ele
delira.
E pois.
Em poesia que é voz de poeta, que é voz de fazer
nascimentos -
O verbo tem que pegar delírio.

8.
Um girasol se apropriou de Deus: foi em Van Gogh.

(in. O Livro das ignorãças)
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BIOGRAFIA DO ORVALHO
(Manoel de Barros)

1.
Este é um caderno de haver frases nele.
Um rio passa perto.
Estou sentado no barranco do rio.
Emas no pátio engolem cobras.
Uma formiga está de boca aberta para a tarde.
As quatro patas da formiga tentam abraçar o sol.
Na verdade, não sei se são as patas da formiga
que tentam abraçar o sol
Ou se são minhas frases que desejam fazes esse trabalho.
Agora uma brasa me garça.
E os arrebóis latejam.

2.
Deus disse: Vou ajeitar a você um dom:
Vou portencer voê para uma árvore.
E pertenceu-me.
Escuto o perfume dos rios.
Sei que a voz das águas tem sotaque azul.
Sei botar cílio nos silêncios.
Para encontrar o azul eu uso pássaros.
Só não desejo cair em sensatez.
Não quero a boa razão das coisas.
Quero o feitiço das palavras.
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Para encontrar o azul eu uso pásssaros
letras fizeram-se para frases.
(Machado de Assis. in. Manoel de Barros. Retrato do Artista Quando Coisa. 1998)
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"A maior riqueza do homem é a sua incompletude" (Manoel de Barros)

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Seis ou Treze Coisas que eu Aprendi Sozinho
(Manoel de Barros)

Gravata de urubu não tem cor.
Fincando na sombra um prego ermo, ele nasce.
Luar em cima de casa exorta cachorro.
Em perna de mosca salobra as águas cristalizam.
Besouros não ocupam asas para andar sobre fezes.
Poeta é um ente que lambe as palavras e depois se alucina.
No osso da fala dos loucos têm lírios.

Com cem anos de escória uma lata aprende a rezar.
Com cem anos de escombros um sapo vira árvore e cresce
por cima das pedras até dar leite.
Insetos levam mais de cem anos para uma folha sê-los.
Uma pedra de arroio leva mais de cem anos para ter murmúrios.
Em seixal de cor seca estrelas pousam despidas.
Mariposas que pousam em osso de porco preferem melhor as cores tortas.
Com menos de três meses mosquitos completam a sua eternidade.
Em ente enfermo de árvore, com menos de cem anos, perde o contorno das folhas.
Aranha com olho de estame no lodo se despedra.
Quando chove nos braços da formiga o horizonte diminui.
Os cardos que vivem nos pedrouços têm a mesma sintaxe que os escorpiões de areia.
A jia, quando chove, tinge de azul o seu coaxo.
Lagartos empernam as pedras de preferência no inverno.
O vôo do jaburu é mais encorpado do que o vôo das horas.

Besouro só entra em amavios se encontra a fêmea dele vagando por escórias...
A quinze metros do arco-íris o sol é cheiroso.
Caracóis não aplicam saliva em vidros; mas, nos brejos, se embutem até o latejo.
Nas brisas vem sempre um silêncio de garças.
Mais alto que escuro é orumor dos peixes.
Uma árvore bem gorjeada, com poucos segundos, passa a fazer parte dos pássaros que gorjeiam.
Quando a rã de cor palha está para ter - ela espicha os olhinhos para Deus.
De cada vinte calangos enlanguescidos por estrelas, quinze perdem o rumo das grotas.
Todas estas informações têm soberba desimportante científica - como andar de costas.

Ilhota de pedra no meio de um corixo é de nome sarã.
Amanhecer de um sarã tem gala! Eu assisto:
Martim-pescador, de repente, no alto da água, arregaça o cuzinho e solta sua isca de guspe.
Peixe vai ver o que foi aquele guspe: antepara!
De veloz arrojo Martim-pescador frecha na água, e num átimo sobe -
O peixe atravessado no bicó!
As águas remansam e rezam.
Que esse martim-pescador é fela.

Tem quatro teorias de árvore que eu conheço.
Primeira: que arbusto de monturo agüenta mais formiga.
Segunda: que uma planta de borra produz frutos ardentes.
Terceira: nas plantas que vingam por rachaduras lavra um poder mais lúbrico de antros.
Quarta: que há nas árvores avulsas uma assimilação maior de horizontes.

A água passa por uma frase e por mim.
Macerações de sílabas, inflexões, elipses, refegos.
A boca desarruma os vocábulos na hora de falar
E os deixa em lanhos na beira da voz.

O coró é bicho abléfaro - e sem engonços.
Habita encostado nos termos que lhe referem.
Tem o corpo transparente e lambe o próprio oco na fortuna
de que esse oco ainda seja a placenta em que morou.
O coró se suficienta.
Devora-se como um prato azedo de formigas.
E lambe até o algodão do nariz em que está morto.

O rio atravessou um besouro pelo meio - e uma falena.
Era um besouro de âmbar, hosno
E uma falena de Ocaso. O besouro
Enfiou na falena seu aguilhão
E a trouxe para seu esconderijo.
Depois esplendorou-a toda antes de comê-la.

Uma chuva é íntima
Se o homem a vê de uma parede umedecida de moscas;
Se aparecem besouros nas folhagens;
Se as lagartixas se fixam nos espelhos;
Se as cigarras se perdem de amor pelas árvores;
E o escuro se umedeça em nosso corpo.

De noite passarinho é órfão
para voar. Não enxerga
nem o pai das vacas
nem o adágio dos arroios.
Seu olho de ovo emaranha com folhas.
No escuro não sabe medir direção e trompa nos paus.
Pasarinho é poeta de arrebol.

Em passar sua vagínula sobre as pobres coisas do chão, a
lesma deixa risquinhos líquidos...
A lesma influi muito em meu desejo de gosmar sobre as
palavras
Neste coito com letras!
Na áspera secura de uma pedra a lesma esfrega-se
Na avidez de deserto que é a vida de uma pedra a lesma
escorre. . .
Ela fode a pedra.
Ela precisa desse deserto para viver.

Tem assas mas não entoa.
Penso que o papel o aceite.
Cuido que não seja nada.
Quase que não abre olho.
Acho que será de pano.
Falam que passou de lata.
No lugar de haver boca está o espanto.
Ri por não ter rosto.

Que a palavra parede não seja símbolo
de obstáculos à liberdade
nem de desejos reprimidos
nem de proibições na infância,
etc. (essas coisas que acham os
reveladores de arcanos mentais)
Não.
Parede que me seduz é de tijolo, adobe
preposto ao abdomen de uma casa.
Eu tenho um gosto rasteiro de
ir por reentrâncias
baixar em rachaduras de paredes
por frinchas, por gretas - com lascívia de hera.
Sobre o tijolo ser um lábio cego.
Tal um verme que iluminasse.

Seu França não presta pra nada -
Só pra tocar violão.
De beber água no chapéu as formigas já sabem quem ele é.
Não presta pra nada.
Mesmo que dizer:
- Povo que gosta de resto de sopa é mosca.
Disse que precisa de não ser ninguém toda vida.
De ser o nada desenvolvido.
E disse que o artista tem origem nesse ato suicida.

Lugar em que há decadência.
Em que as casas começam a morrer e são habitadas por
morcegos.
Em que os capins lhes entram, aos homens, casas portas
adentro.
Em que os capins lhes subam pernas acima, seres adentro.
Luares encontrarão só pedras mendigos cachorros.
Terrenos sitiados pelo abandono, apropriados à indigência.
Onde os homens terão a força da indigência.

 (in. O Guardador de Águas)
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